27/04/2012

Das fragmentações

Nesses tempos pós-modernos, difícil tem sido escutar um único disco de uma tacada só, ler apenas um livro por vez, viciar-se em somente uma série, adotar um único caminho ou way of life.

Como ser, então, uma única pessoa - se é que isso já foi possível?

18/04/2012

A cidade que se fecha ao nosso redor

Alguém algum dia me soltou a indireta: "essa galera que vem de outras cidades se fecha muito na dela". Era uma referência disfarçada à alteridade, ao estrangeirismo, ao vir de fora, mas sem xenofobia, apenas com alguma desconfiança e bastante umbiguismo, como se quem chega, chegasse apenas para consumir e ir embora. Esse alguém esqueceu, contudo, que de colonialismos já estamos fartos. Se não quer ser explorado, que lute, não se renda. E que se lembre de que boa parte do mundo contemporâneo é resultado de imperialismos diversos - sua cultura incluso.

Pessoas assim se esquecem, na verdade, acima de tudo, que vivemos um tempo de conexões. Não é para viver sem fronteiras que reza o slogan? Por que não vivê-la? De mais a mais, quem deseja se manter isolado geográfica e temporalmente, que derrube as pontes e construa muralhas ao seu redor. Se a solução é separar, esquartejar, matar a mobilidade e a fluidez, então que façamos isso - mas aviso, num tom esperançoso e já certeiro do que virá, que nunca conseguiremos tal feito. Nossa história é uma história de movimento, não de sedentarismo. Querem voltar a ser feudos? Bem, talvez nunca tenhamos deixado de sê-lo. Mas mesmo as fortalezas precisam de portões que as conecte com o mundo lá fora.

Morar em Salvador sempre me impeliu fortemente a não sair de casa. Não que seja uma cidade culturalmente pobre, muito pelo contrário. Mas vários fatores me mantêm preso em minha residência - além da minha sincera predileção de curtir o lar. Há muito que ver, entretanto, e não gostaria de perder tanto tempo. Muito o que experimentar, muito a conhecer, muito a caminhar. Mas a cidade não me convida em quase nada e ainda me afasta dela mesma - são polos diferentes porém complementares: a falta de convite antecede o pontapé que rechaça. Isso, de fato, é a cidade ou são as pessoas, o que em certa medida tanto faz, porque a primeira é constituída por essas últimas, além de formatar os modos de vivência que não só testemunhamos mas pelos quais passamos. E a negação se dá pelos mais diversos motivos: por sempre ser tratado como turista (branco e virtualmente paulista e endinheirado, vale ressaltar), pelo altíssimo custo de vida, pelos terríveis índices de violência, pela extrema dificuldade de andar pelas ruas, pelas distâncias desanimadoras, pelo trânsito infernal e por um ethos impenetrável e incompreensível, dentre outros motivos, claro. Definitivamente, por mais bela, diversa e repleta de história que possa ser, Salvador não é uma cidade convidativa a se viver, mas somente a se conhecer. Talvez por isso mesmo, e ironicamente, é facilmente vendida como prato feito para os turistas - e nem tinha como não ser.

Pensei, pensei bastante no que me foi indiretamente dito. E cada vez mais me certifico: não tenho capacidade para me entranhar em certas estruturas, em certos locais, em certas culturas. Mea culpa, sou capaz de reconhecer. E tal se aplica facilmente a Salvador. Mas reconhecer as próprias falhas, penso que ser unanimidade, é um exercício fácil a quem é pouco orgulhoso. E cada vez também fico mais certo que a alteridade é riquíssima, mas ela mesma é perenemente repelida por um ufanismo hiperlocalizado bobo e sem motivo de ser (o que muito se vê por aqui) - orgulho tal que se configura quase como um engodo cultural e que parece cegar instantaneamente, no momento de nascimento, os cidadãos locais para os problemas que o cercam. O discurso reinante que dá forma (ou é formado, não sei) por esse bairrismo desmedido diz mais ou menos o seguinte: "nós temos problemas, sim, mas a Bahia é linda, e se não gosta, se pique daqui, vá, vá".

Dito de outra forma, me pergunto quase com certeza da resposta: somos nós que nos fechamos às cidades ou elas que nos impelem a um fechamento particularizado - sendo o mesmo válido para o oposto, para uma abertura? Sinceramente, talvez seja uma pergunta que não mereça resposta alguma. Uma retórica só para se pensar. Isso, claro, se o orgulho besta de estar cultural e geograficamente situado permitir.

14/04/2012

Vinte a cada apartamento e vinte apartamentos por andar

No show do 4 Cabeça, um dos músicos ia falar algo sobre Copacabana, o bairro carioca que, óbvio, serviu de inspiração para a música homônima do grupo. Ainda no comecinho da sua explanação, um colega seu solta a piadinha:
- Começou mal, hein?

Em outro momento bem anterior, Pedro Bial, o filósofo que cobriu a Queda do Muro de Berlim, dizia no seu BBB, num tom mais ou menos disfarçadamente - mas nem tanto - de desqualificação:
- O problema de Copacabana é que ali tem muito de tudo.

Para quem é de fora, é impossível conceber que Copacabana seja um bairro rechaçado e estigmatizado pelos próprios cariocas. Quem vive longe do suposto glamour de suas calçadas com ondinhas blanche et noir simplesmente não pode perceber os pontapés que recebem corredores culturalmente riquíssimos como Nossa Senhora de Copacabana e Barata Ribeiro. Mesmo que as novelas globais mostrem o Leblon ou o Jardim Botânico como os lugares áureos do Rio, reside ainda um enorme peso de luxo sobre Copa. Ter conhecidos morando lá é motivo de admiração, espanto, inveja, exclamações. Uau!, é o que aparece nas testas de pessoas várias.

Copacabana é um bairro misto. De fato, pensando bem, deve haver poucos como esse. É possível encontrar tudo por lá. Como diz a música, tem camelô, prostituta, turista, mendigo, coco na areia e cocô no mar. É um espaço amplamente usado por gringos, seus dólares e euros, mas também vivamente por moradores locais. Há restaurantes e barzinhos caros, prontos para o consumo sem freios de chopps e de entretenimento commodity. Mas há também uns e outros lugares próprios para quem é dali, mora ali, conhece aquilo ali. Há lojas de ferragens, de produtos para o lar, shoppings, supermercados, bancos, botecos fuleiros, serviços de água e gás, McDonalds e Bob's, sorvetes de iogurte, metrô, madames e cadelas em exposição. Há um mundo inteiro pulsando em Copacabana. Para conhecê-lo, basta adentrar em suas artérias. Num movimento canastrão e até covarde, porém, uns e outros buscam retirar qualquer traço de boa classificação dali. Algo como "Copacabana não é lugar de classe".

Não entendo exatamente o que se busca pelo (de)morar ou mesmo pelo entreter-se. O que é qualidade de vida? Morar no alto de uma colina (porque morro é coisa de pobre) separado do nível do mar? Ter de usar carro particular para ir ao ou voltar do trabalho? Não ter figuras bizarras porém curiosas na portaria do seu edifício? Ou é simplesmente ter o poder para migrar ao modo de gafanhotos, sempre em busca da próxima melhor plantação para extrair os substratos simbólicos essenciais e deixar o resto todo arrasado para os demais?

Copacabana, no fim de semana...

29/03/2012

Dentro do zovido

Por que eu gosto de fones de ouvido?
- Porque às vezes conseguem me isolar do ambiente.
- Porque, quando são bons, ouve-se maravilhosamente bem cada um dos instrumentos.
- Realçam os graves de um modo que não consigo perceber quando estou sem eles.

Por que não gosto de fones de ouvido?
- Porque me isolam demasiadamente do ambiente.
- Porque, quando são bons, os sons são perfeitinhos demais.
- Porque exigem (ou clamam por) uma dedicação acústica tão grande que nem sempre estou disposto a dar.

03/02/2012

Em respeito ao artista

Em vários pontos discordo muito dela. Mas recentemente, ao discorrer suas opiniões sobre o excesso e o que dele resulta, veio à tona a frase com a qual concordo, ainda que por um viés levemente distinto: é preciso respeitar o artista. Em seu tempo, quanto à sua obra, em relação ao seu significado...

Não é novidade que a indústria cultural espreme e suga tudo do artista. E é preciso que o lucro venha no tempo mais rápido possível. O que é irônico, porque quanto maior a aceleração, maior a tendência de que a velocidade seja menor no fim da reta. Quer dizer, há um ponto ideal, na verdade, descrito no auge do gráfico de formato parabólico ou hiperbólico, sei lá, e o mesmo deve proceder com o suco que se extrai da fruta e com o dinheiro que se multiplica com a música tocada exaustivamente nas rádios. Se ultrapassamos o ritmo inicial, ou se não o atingimos em tempo hábil, então o fôlego final é pequeno.

O fato é que não é só por respeito e parcimônia, mas também e especialmente por teimosia, que não consigo gostar do último figurão ou da última banda a fazer sucesso. Não importa o quão toque bem, não importa o quão cante bem, não importa o quão sejam bons seus livros, recuso-me a consumir abobalhadamente e sem moderação aquilo que está em voga. Não é só para bancar o diferente, mas é que também preciso de tempo para degustar aquilo que mal tem sido mastigado pela maioria - ou talvez eu é que seja lerdo para enxergar a genialidade em alguns meros minutos. No fim das contas, vejo aí uma luta constante, como se todos estivessem em corrida desesperada para conseguir provar o último sabor, o mais recente recheio, a nova cobertura - o que nos remete, uma vez mais, ao ponto ideal do que tange à aceleração, às trocas de marcha e a velocidade maior a ser atingida. Dessa corrida, contudo, não participo. Percebo hoje que toda obra precisa de um tempo para ser ponderada.

01/02/2012

2011: acabou

- 1 curso de língua estrangeira
- 1 estágio docente
- 3 eventos acadêmicos
- 2 artigos em revistas
- 2 artigos em livros
- 1 dissertação, 165 páginas
- 1 projeto de doutorado
- e mais 1 vida normal inteira pra tocar

Tinha momentos que eu jurava como não ia dar. Em outros momentos, jurava que não ia nunca acabar. Mas deu, acabou. 2011 se foi, com pouco mais de um mês de atraso.

Olá, 2012! Vamos lá?

31/01/2012

Cores

- Oi, bom dia. Onde fica o restaurante universitário?, perguntam-me.
- É esse prédio rosa aqui, aponto.

Certo de que rosa não era a cor. Era salmão. Mas como homem só enxerga em 16 bits, rosa ficaria sendo.

19/12/2011

Trangressão político-gastronômica

Era um gringo desses bem a cara dos USA. Poderia se chamar John, McCoy, Edward, e poderia ser um engenheiro ou advogado aposentado e cansado das mesmices de seu país. Mas quem ele era, afinal, não é tão crucial. O que importa mesmo é que se empanturrava de McDonalds, fritas e Coke. Ali punha para dentro aquilo que encontraria em qualquer lugar do mundo. A experiência local estava perdida, parecia que pouco lhe dizia. Mas talvez estivesse descansando do acarajé, do caruru, do vatapá e das outras iguarias oriundas do dendê. Ainda assim, mesmo globalizado, estava nitidamente deslumbrado com as maravilhas da Bahia.

John, McCoy ou Edward, nosso gringo, lambuzava seu sanduíche de plástico com katchup e mostarda e comia tudo com uma voracidade animal. Em cima da melequeira que se formava, jogava a única coisa que dava gosto àquele rango: pimenta do reino moída, dessas que a gente compra no mercadinho da esquina em saquinhos baratos. E ali, o gringo de cabelos brancos e cara suada, enfrentando o calor de Salvador na praça de alimentação de um shopping qualquer, deturpando a não-culinária do sanduíche-padrão mais famoso do mundo, era a coisa mais fora do eixo que eu vi naquela tarde que antecedia a data mais consumista do nosso calendário cristão.

A cena do dia pagou tudo. Aquele gringo americanizado usando tempero não americano numa comida transnacional (mas tipicamente americana) foi a transgressão não transgressora. Acho que aquele homem não tem ideia do que fazia: não se trata de simplesmente politizar a arte de comer, numa atitude pseudoesquerdista, mas aquela mistura colocava em xeque querelas antigas entre local e global, norte e sul, dominados e dominantes, apocalípticos e integrados.

Diria que ele é um quase apocalíptico, sem nem se perceber como tal. Ingênuo, glutão e ensimesmado, apenas fazia o que queria para ter o sabor perseguido. O sanduíche era seu, a pimenta era sua, mas a dimensão política de sua mistura ultrapassou a experiência do paladar e da prática social. Quantos, afinal, fariam algo similar ao que ele fez? E quantos suportariam a ardência?

Que John, McCoy ou Edward transgrida ainda mais outros padrões, em especial os gastronômicos. Que leve tantos saquinhos de pimenta e outras delícias locais para sua terra. Que estrague os padrões de outras redes, e que cruze outras redes, que ponha tudo em movimento e em conexão. Que seja transgressor ainda que nem se saiba como tal.

14/12/2011

Foto de costas

Gosto de fotos de costas porque:
. por vezes revelam a visão do fotografado, e não do fotógrafo.
. saem da zona do comum, do ordinário, do rotineiro.
. capturam um momento de surpresa e, não raro, parecem despir o assunto de suas possíveis máscaras.
. não possuem aquela coisa abobalhada do forçado sorriso para a câmera.
. possuem uma aura de subjetividade, intimismo e solitude muito própria.
. algumas costas são belas e, não obstante, sempre ficam renegadas ao descaso.

01/12/2011

Suco de abacaxi

Nem só de afetos se denuncia um casal. Pois que aquele era um casal bem discreto. Ele na dele, ela na dela. Mas os indícios sempre ficam no ar, e às vezes uma pista escapa sem querer - mesmo sem mãos dadas, mesmo sem carícias. E eu, desligado a fofocas, deixo pra lá, e nem pego nada no ar.

Mas foi um suco que me encaminhou um pouco mais rumo à certeza - porque a dúvida já havia sido plantada. Um suco de abacaxi de 500ml compartilhado, 2 canudos, e o copo entre os dois. Quem compartilharia um suco senão um casal?

- Aquele menina, é namorada dele?, perguntei a alguém.
- É sim, me responderam.
- Arrá, pensei.